domingo, 5 de maio de 2013

Sentir de onde vem as coisas que consumimos


                Para escrever este texto eu abri meu notebook num momento de angústia que se iniciou ontem e eu não tinha as palavras certas para descrevê-la. Há um imenso prazer em ter um notebook e pode fazer isso. Um investimento no ego de tal maneira em poder ter recursos tecnológicos e intelectuais neste gesto. Eu poderia escrever com papel e lápis ou caneta, mas eu escrevo no computador para postar na internet o mais rápido possível e transformá-lo em propriedade do mundo e "ganhar tempo". O que está por trás de do notebook? Da televisão? Do DVD? E de todas as outras coisas que nos dão conforto e prazer?
                Numa aula sobre teoria marxista, a professora enfatizou várias vezes que tudo o que vimos foi feito com sangue e suor da classe trabalhadora. Naquele instante eu achei um tanto melodramático, oras quem não sabe que as coisas são produzidas pelos trabalhadores? Relendo os textos da aula ontem e hoje fui tomada por uma angústia estranha e como de costume culpei a TPM. Mas as coisas são mais profundas do que parece. Sempre são assim. Me dei conta que tudo que é produzido hoje pela humanidade é uma série de esconderijos de sofrimentos. Depois de uma semana exaustiva, eu tomo uma cerveja. Esta foi feita numa fábrica por trabalhadores que vendem o maior tempo de suas vidas, tempo este que poderiam estar com seus filhos, ou em qualquer outra atividade que lhes realizassem. Não raramente eles se acidentam, ou têm a audição reduzida ao longo dos anos. Esse computador que está na minha frente, quantas pessoas morreram para que eu possa escrever esse texto? Algumas pessoas podem me achar melodramática demais, como eu pensei quando a professora repetia exaustivamente "sangue e suor da classe trabalhadora". De fato é o melodrama da vida real. Onde os estudantes desconhecem o sofrimento dos professores, e os professores desconhecem os dilemas dos estudantes. Onde os paciente desconhecem o sofrimento dos trabalhadores da saúde, e estes terminam por ignorar boa parte do sofrimento dos pacientes por ter que atender num tempo cada vez mais reduzido. Onde todos nós, consumidores, desconhecemos o sofrimento de quem trabalha para o nosso consumo. Aí reside um problema fundamental, consumimos a vida dos outros. E não há como ser feliz desse jeito. Por isso tudo que compramos aos poucos perde o sentido, fica sem graça e inventamos coisas novas para comprar.
                Outra perspectiva que parece muito convincente para algumas pessoas é a de que não precisamos de dinheiro para sermos felizes, o trabalhador que fez a cerveja pode ser mais feliz que eu. O relativismo das análises são esquemas de pensamentos muito uteis para não assumir nossa responsabilidade com o mundo. Digamos que ele seja feliz, que ótimo e porque ele não pode ser mais feliz? Sem doenças adquiridas com o trabalho? Com mais tempo para realizar atividades que ele gosta? Com uma saúde melhor para ele e sua família? Ele se acredita feliz por "cumprir sua missão no mundo, ou suas responsabilidades que seja", mas se a felicidade se resumisse a isso a humanidade ainda estaria nas cavernas.
                A verdade é que vivemos num mundo pesado, carregado das nossas dores. Quando compramos algo falamos como patrão, destratamos a atendente cujo o trabalho é criar necessidades irreais para nossas vidas. Que trabalho horroroso. Mas isso é o que garante que ela tenha alguns objetos fabricados da dor de outros trabalhadores e também possa se acreditar um tanto mais feliz.
                Se Marx estava certo e o que funda o homem como ser social é o trabalho, ao desconhecermos o trabalho uns dos outros fica mais fácil o desperdício, a futilidade e os breves instantes de prazer. Todavia, também nos distanciamos da felicidade, pois trabalhamos cada dia mais e em piores condições para ter o fruto do sangue e suor de outros trabalhadores. Tem uma frase que circula por aí que resume isso "não tá fácil pra ninguém".
                Neste texto eu não quero falar mal dos donos dos meios de produção. Não é deles que têm que partir a mudança do mundo. Eles estão aprisionados neste mundo da mesma forma que nós e somando seus prazeres, defendendo isso com todas as forças. Mas nós não defendemos extinguir essas dores com todas as forças, eles apenas se aproveitam disso. Não estou defendendo eles, só não espero nenhuma que angústia da parte deles que resolva nossos problemas.
                Sempre escutei que a gente tem que dar tudo que não tivemos aos nossos filhos. Sabe aquele brinquedo que gira, canta e brilha? Que custa boa parte do salário? Sem medo de errar, se você girasse e cantasse com seu filho brilharia muito mais na história dele. Mas a gente prefere dar o nosso suor e sangue, com o suor e sangue dos trabalhadores da fábrica de brinquedos para aliviar nossa consciência por não ter tempo pra brincar com nossos filhos. A gente pensa numa promoção para ter mais dinheiro para ter mais coisas e com isso compra o discurso de "reconhecimento profissional" e toda a lógica meritocrática como se existisse possibilidade de felicidade individual e isolada. Esquecemos que é impossível se esconder do sofrimento, que o diga a indústria farmacêutica vendendo cada vez mais antidepressivos.
                Parei um tempo, procurando uma conclusão para esse texto. Acho que não tem. Dentro das possibilidades estou um tanto menos ansiosa. Saber de onde vem as coisas é completamente diferente de sentir de onde vem as coisas. Em resumo é isso que eu descobri e ficaria bem satisfeita se alguém viesse a ler e pudesse me dizer que sente a mesma coisa, afinal é tão mais doloroso sofrer só. Acho que se Marx estivesse vivo falaria: Proletariado do mundo não escondam suas dores! Sofram e lutem unidos!

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