Para
escrever este texto eu abri meu notebook num momento de angústia que se iniciou
ontem e eu não tinha as palavras certas para descrevê-la. Há um imenso prazer
em ter um notebook e pode fazer isso. Um investimento no ego de tal maneira em
poder ter recursos tecnológicos e intelectuais neste gesto. Eu poderia escrever
com papel e lápis ou caneta, mas eu escrevo no computador para postar na
internet o mais rápido possível e transformá-lo em propriedade do mundo e "ganhar
tempo". O que está por trás de do notebook? Da televisão? Do DVD? E de
todas as outras coisas que nos dão conforto e prazer?
Numa
aula sobre teoria marxista, a professora enfatizou várias vezes que tudo o que
vimos foi feito com sangue e suor da classe trabalhadora. Naquele instante eu
achei um tanto melodramático, oras quem não sabe que as coisas são produzidas
pelos trabalhadores? Relendo os textos da aula ontem e hoje fui tomada por uma
angústia estranha e como de costume culpei a TPM. Mas as coisas são mais
profundas do que parece. Sempre são assim. Me dei conta que tudo que é
produzido hoje pela humanidade é uma série de esconderijos de sofrimentos.
Depois de uma semana exaustiva, eu tomo uma cerveja. Esta foi feita numa
fábrica por trabalhadores que vendem o maior tempo de suas vidas, tempo este
que poderiam estar com seus filhos, ou em qualquer outra atividade que lhes realizassem. Não raramente eles se acidentam, ou têm a audição reduzida ao
longo dos anos. Esse computador que está na minha frente, quantas pessoas
morreram para que eu possa escrever esse texto? Algumas pessoas podem me achar
melodramática demais, como eu pensei quando a professora repetia exaustivamente
"sangue e suor da classe trabalhadora". De fato é o melodrama da vida
real. Onde os estudantes desconhecem o sofrimento dos professores, e os
professores desconhecem os dilemas dos estudantes. Onde os paciente desconhecem
o sofrimento dos trabalhadores da saúde, e estes terminam por ignorar boa parte
do sofrimento dos pacientes por ter que atender num tempo cada vez mais
reduzido. Onde todos nós, consumidores, desconhecemos o sofrimento de quem
trabalha para o nosso consumo. Aí reside um problema fundamental, consumimos a
vida dos outros. E não há como ser feliz desse jeito. Por isso tudo que
compramos aos poucos perde o sentido, fica sem graça e inventamos coisas novas
para comprar.
Outra
perspectiva que parece muito convincente para algumas pessoas é a de que não
precisamos de dinheiro para sermos felizes, o trabalhador que fez a cerveja
pode ser mais feliz que eu. O relativismo das análises são esquemas de
pensamentos muito uteis para não assumir nossa responsabilidade com o mundo.
Digamos que ele seja feliz, que ótimo e porque ele não pode ser mais feliz? Sem
doenças adquiridas com o trabalho? Com mais tempo para realizar atividades que
ele gosta? Com uma saúde melhor para ele e sua família? Ele se acredita feliz
por "cumprir sua missão no mundo, ou suas responsabilidades que seja",
mas se a felicidade se resumisse a isso a humanidade ainda estaria nas
cavernas.
A
verdade é que vivemos num mundo pesado, carregado das nossas dores. Quando
compramos algo falamos como patrão, destratamos a atendente cujo o trabalho é
criar necessidades irreais para nossas vidas. Que trabalho horroroso. Mas isso
é o que garante que ela tenha alguns objetos fabricados da dor de outros
trabalhadores e também possa se acreditar um tanto mais feliz.
Se
Marx estava certo e o que funda o homem como ser social é o trabalho, ao
desconhecermos o trabalho uns dos outros fica mais fácil o desperdício, a
futilidade e os breves instantes de prazer. Todavia, também nos distanciamos da
felicidade, pois trabalhamos cada dia mais e em piores condições para ter o
fruto do sangue e suor de outros trabalhadores. Tem uma frase que circula por
aí que resume isso "não tá fácil pra ninguém".
Neste
texto eu não quero falar mal dos donos dos meios de produção. Não é deles que
têm que partir a mudança do mundo. Eles estão aprisionados neste mundo da mesma
forma que nós e somando seus prazeres, defendendo isso com todas as forças. Mas
nós não defendemos extinguir essas dores com todas as forças, eles apenas se
aproveitam disso. Não estou defendendo eles, só não espero nenhuma que angústia
da parte deles que resolva nossos problemas.
Sempre
escutei que a gente tem que dar tudo que não tivemos aos nossos filhos. Sabe
aquele brinquedo que gira, canta e brilha? Que custa boa parte do salário? Sem
medo de errar, se você girasse e cantasse com seu filho brilharia muito mais na
história dele. Mas a gente prefere dar o nosso suor e sangue, com o suor e
sangue dos trabalhadores da fábrica de brinquedos para aliviar nossa consciência
por não ter tempo pra brincar com nossos filhos. A gente pensa numa promoção
para ter mais dinheiro para ter mais coisas e com isso compra o discurso de
"reconhecimento profissional" e toda a lógica meritocrática como se
existisse possibilidade de felicidade individual e isolada. Esquecemos que é
impossível se esconder do sofrimento, que o diga a indústria farmacêutica
vendendo cada vez mais antidepressivos.
Parei
um tempo, procurando uma conclusão para esse texto. Acho que não tem. Dentro
das possibilidades estou um tanto menos ansiosa. Saber de onde vem as coisas é
completamente diferente de sentir de onde vem as coisas. Em resumo é isso que
eu descobri e ficaria bem satisfeita se alguém viesse a ler e pudesse me dizer
que sente a mesma coisa, afinal é tão mais doloroso sofrer só. Acho que se Marx estivesse vivo falaria: Proletariado do mundo não escondam suas dores! Sofram e lutem unidos!
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